SOBRE DENTES, DORES E PERDÃ0

Como tantos pacientes, Lurdes refletiu nas palavras soltas durante os primeiros minutos de atendimento o que seu rosto estampava: tristeza, medo, ansiedade... E a história dela passou a ser relatada como um desabafo, como uma válvula de escape para tantos sentimentos incontidos e incompreendidos.
Da apreensão para tratar o dente “carreado” ( ao referir-se ao dente cariado da forma mais inusitada possível), Lurdes pediu permissão para sentenciar a morte de tudo que a incomodava, de tudo que a atormentava. Não pareceu simples de imediato, mas talvez fácil para quem estivesse disposto a ouvi-la.
O que mais a perturbava, não era o dente “carreado”, era o abandono, a solidão, o desprezo e a violência que sofria do único homem que ela amou, e que agora a trocou por outra mais jovem, largando-a com quatro filhos para criar. Este mesmo homem que ela diz amar loucamente, que diz perdoar incondicionalmente, este mesmo homem a espancou diversas vezes na frente dos filhos, humilhou-a em público, a fez perder um filho ao chutar sua barriga de sete meses.
Eu ouvi tudo, e mesmo depois de seguidas frases e choros Lurdes não dava espaço para que eu me manifestasse. Mas como eu reagiria? A própria iniciou seu relato dizendo que amava este homem, que o perdoava, e o queria de volta mesmo depois de todo o mal que ele lhe proporcionou.
A vida e o destino de Lurdes, de 38 anos, não está nas minhas mãos. Definitivamente ela já tem uma opinião formada. Nem todo o sofrimento a fez mudar, amadurecer. Daí me questiono sobre a normalidade do que passa  a ser para uns e outros, da dor e do perdão que significam para uns e outros não. Para alguns, talvez seja cômodo manter uma dor, sim porque ela sofre duas vezes, com o marido que na presença a espanca e na ausência a faz sofrer querendo a sua volta. Complicado relacionar uma solução...
Lurdes saiu do consultório disposta a procurar o marido e a tê-lo de volta nos braços, mesmo sabendo que possíveis dores físicas e emocionais a aguardavam...