Crônicas de vidas na cadeira odontológica

    Depois de alguns anos escrevendo por aqui, retratando histórias e compartilhando vidas que se delinearam através das idas ao consultório odontológico. Chegou o momento de trilhar novos caminhos...
    As "Crônicas de vidas na cadeira odontológica" representam o melhor já publicado por aqui e algumas novidades, novos personagens, muitos destinos, várias possibilidades.
   Espero que as histórias contadas aqui, surgidas a partir deles-os pacientes-porque sem eles não existiria este blog, não se concretizaria o livro-possam fazer com que a Odontologia seja vista cada vez mais como parte de um todo, de um coletivo, e que possamos cada vez mais sair do consultório e chegar até milhões de desassistidos.
           Bocas, dentes e gengivas são reflexos das condições sociais, e o papel assumido pela Saúde Bucal Coletiva deve ser expandido, vivenciado, experimentado a cada momento, a cada palavra, a cada gesto...
     Estejamos sempre dispostos a ouvir, fiquemos sempre "De Boca Aberta" para o mundo...
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De Boca Aberta: O Livro

      Muitas coisas aconteceram nos últimos tempos, e não ocultarei que por várias vezes pensei que o título da atual postagem seria: O ÚLTIMO POST... E por fim, o fim do blog!
         Certamente as histórias não acabaram, muitas vidas ainda cruzam minha vida, e muitas são escancaradas ainda na cadeira odontológica. Mas o tempo muitas vezes não está ao lado das histórias, porém elas ficam todas bem guardadas, acalentadas pela mente, tratadas como amigos, como afetos a serem disponibilizados para quem curte o que escrevo.
        Nos últimos tempos nunca deixei de pensar em todas estas histórias e na possibilidade de voltar a retratá-las. Mas não deixei de escrevê-las...
       O fato é que muitas das histórias contadas aqui estarão escancaradas nas páginas de um livro: o De Boca Aberta virará livro! 
                   Vou deixar o restante para depois... Para muito breve!
       Espero que o livro seja bem vindo tanto quanto o são todos os protagonistas das minhas histórias.

Sem roupa e sem dente

  Muitas histórias ainda podem surgir de situações inesperadas e advindas de estranhos, de inimagináveis e improváveis pacientes que na primeira impressão me parecem tão normais quanto desejo que os sejam. Mas nem tudo é exatamente como desejamos...
   Quando uma senhora de aproximadamente 50 anos terminou de ser atendida, a sua saída da cadeira odontológica era aguardada sob a mais tranquila e"normal"ação permeada pelo sobe e desce da cadeira. A espera do próximo paciente foi,então, quebrada por um questionamento um tanto inusitado da paciente que soltou:
   -Sei que o senhor é dentista! 
   E eu pensando com cara de assustado: -E ela achou que tinha ido aonde? Ao proctologista??
  -Pelo fato do senhor ser dentista nada impede que eu possa mostrar uma mancha na minha perna, nao é mesmo?-Completou ela.
  -Mancha na sua perna? Perguntei, porém antes mesmo que eu desse o último suspiro e fechasse meus lábios aquela senhora levantou completamente a saia e deixou à mostra todo o seu corpo, e tudo para que eu pudesse dar o diagnóstico de uma "mancha".
   -A senhora pode baixar a roupa, já vi a mancha. É necessário que a senhora visite o médico porque nada posso fazer pela mancha na sua perna.
    -Já mostrei "ela"( a mancha)a muitos médicos e nada fizeram, então o senhor também olha boca e talvez entenda de perna também...
    Eu não fui entrar no mérito de discutir a questão relacional (se é que existe) entre a mancha na perna e a boca dela, mas insisti na consulta com o médico.
   Mesmo ela se mostrando reticente acredito que ajudei,pelo menos, aliviando a necessidade que a paciente tinha de mostrar a mancha da perna a um dentista.
   E ela saiu acreditando, ainda, que o dentista poderia ter resolvido o problema da mancha na perna...

SOBRE DENTES, DORES E PERDÃ0

Como tantos pacientes, Lurdes refletiu nas palavras soltas durante os primeiros minutos de atendimento o que seu rosto estampava: tristeza, medo, ansiedade... E a história dela passou a ser relatada como um desabafo, como uma válvula de escape para tantos sentimentos incontidos e incompreendidos.
Da apreensão para tratar o dente “carreado” ( ao referir-se ao dente cariado da forma mais inusitada possível), Lurdes pediu permissão para sentenciar a morte de tudo que a incomodava, de tudo que a atormentava. Não pareceu simples de imediato, mas talvez fácil para quem estivesse disposto a ouvi-la.
O que mais a perturbava, não era o dente “carreado”, era o abandono, a solidão, o desprezo e a violência que sofria do único homem que ela amou, e que agora a trocou por outra mais jovem, largando-a com quatro filhos para criar. Este mesmo homem que ela diz amar loucamente, que diz perdoar incondicionalmente, este mesmo homem a espancou diversas vezes na frente dos filhos, humilhou-a em público, a fez perder um filho ao chutar sua barriga de sete meses.
Eu ouvi tudo, e mesmo depois de seguidas frases e choros Lurdes não dava espaço para que eu me manifestasse. Mas como eu reagiria? A própria iniciou seu relato dizendo que amava este homem, que o perdoava, e o queria de volta mesmo depois de todo o mal que ele lhe proporcionou.
A vida e o destino de Lurdes, de 38 anos, não está nas minhas mãos. Definitivamente ela já tem uma opinião formada. Nem todo o sofrimento a fez mudar, amadurecer. Daí me questiono sobre a normalidade do que passa  a ser para uns e outros, da dor e do perdão que significam para uns e outros não. Para alguns, talvez seja cômodo manter uma dor, sim porque ela sofre duas vezes, com o marido que na presença a espanca e na ausência a faz sofrer querendo a sua volta. Complicado relacionar uma solução...
Lurdes saiu do consultório disposta a procurar o marido e a tê-lo de volta nos braços, mesmo sabendo que possíveis dores físicas e emocionais a aguardavam...

Sobre dores e desafios




                 O mundo  pode nos parecer simples, fácil e muitas vezes colorido, mas nem sempre foi assim na vida de muitos. E muitos dos pacientes com que dialogo constantemente fazem transparecer em seus cotidianos tons diversos e adversos, muitas vezes  cinza e completamente descoloridos. Outros tratam de largar tons vermelhos, amarelos, enfim, muitas cores no que ora lhes parecia preto e branco.
           Quando cada um deles, os pacientes, descarregam suas histórias, fica sempre em minha mente o quanto ainda tenho que percorrer para lembrar quão pequenos são meus problemas, quão descomplicadas são as trilhas que traço e os erros que ora cometo.
          A paciência desapareceu completamente por poucos minutos na vida de Antônia, 30 e poucos anos, mãe solteira, três filhos, sendo um deles deficiente físico. Não havia motivos para que ela surtasse naquele exato momento diante da auxiliar de saúde bucal. O silêncio pairou no ambiente por algum tempo... Foi colocado o tempo adequado para que aquela mãe exorcisasse alguns fantasmas que a atormentam, mesmo que parcialmente e diante de estranhos. Incrível como muitas pessoas se sentem tão confortável em desaguar suas mágoas diante de desconhecidos.
         Quando somente o silêncio nos deu forças para seguir, a mãe desesperada começou a chorar, e depois veio o pedido de desculpas acompanhado do choro da filha de 8 anos.
         E este foi mais um dia, depois de tantas histórias que ousam cruzar meu caminho, e com tão pouco tempo para resumi-las e compartilhá-las, que fico pensando nas dores e angústias de cada paciente que senta na cadeira odontológica e utiliza o pequeno espaço de tempo para criar uma relação de confiança e afeto. Fica a cada um deles, mesmo que carregados de dores e desafios, o meu sincero desejo para que todos os caminhos sejam interligados de paz e harmonia, e que a dor seja passageira, que o tédio seja dizimado pelo calor das poucas e boas palavras, mesmo que de completos desconhecidos.