Preconceitos


Nunca se falou tanto em atendimento humanizado como nos últimos anos. Acho isso extremamente importante, pois tratar o paciente pelo nome, vê-lo como um ser humano que tem sentimentos, anseios e dúvidas torna-se bem mais viável que tratá-lo por números, ou simplesmente pela doença que o acomete.

Mas na realidade não é o que vivenciamos, e alguns justificam a falta de atenção e respeito relacionando-a com as condições precárias de atendimento, ou a péssima remuneração que o sistema se propõe. Definitivamente, não concordo com esses caminhos...

É certo que temos péssimas condições de trabalho, somos muito mal remunerados, mas não justifica ter atitudes que levam ao preconceito e à falta de educação. Os usuários do sistema público não têm culpa, eles são vítimas do sistema...

A alguns meses atrás, durante uma confraternização com vários colegas médicos, enfermeiros e dentistas pude ouvir muitos relatos, e gosto desses momentos, são oportunidades de trocar idéias. Uma história que pretendia ser cômica,pelo menos na visão do colega que estava relatando, tornou-se motivo de discussões por parte de todos . Durante uma noite de plantão no hospital que trabalha, relatou um colega, surgiu um rapaz,na verdade não dava pra saber se era homem ou mulher, mas depois de conversar com ele percebeu-se que era um homem travestido de mulher,ou seja,um travesti que buscava atendimento no único hospital público da cidade. Meu colega continuou relatando,e pasmem, afirmou que pediu ao rapaz que se retirasse do hospital, fosse em casa e vestisse uma roupa de homem, só assim seria atendido. Meu colega esperava que todos rissem da história dele, pelo contrário, entramos numa discussão que durou vários minutos, e todos concordavam que ele estava errado. Ele não tinha que ter expulsado o paciente do hospital simplesmente por ele vestir-se fora do usual, ou talvez por ser homossexual. Não importa a roupa que o paciente vista, a cor de sua pele, a sua orientação sexual,se ele é rico ou pobre,se ele chegou até o hospital a pé ou dirigindo um astra último modelo. Não tem que existir preconceito de forma alguma! Absurdos como esse só servem para macular mais ainda o sistema de saúide já tão falho e cheio de imperfeições que possuímos.

No final da discussão, todos concordaram que o colega agiu de forma preconceituosa, e colocou em risco a vida de um ser humano.Ele foi o único a continuar achando que estava certo,e deve pensar dessa forma ainda hoje, uma grande pena! E se o paciente fosse esclarecido, soubesse de seus direitos ,poderia ter processado o caro colega.

"Vamos celebrar os preconceitos, o voto dos analfabetos, comemorar a água podre e todos os impostos,queimadas,mentiras e sequestros. Nosso castelo de cartas marcadas... toda hipocrisia e toda afetação,todo roubo e toda indiferença..." ( Perfeição, Renato Russo)

Abraço a todos

Alfadentizar


Educação e saúde são dois pilares fundamentais do desenvolvimento humano,sem o primeiro nos tornamos manipuláveis e sem o segundo nossos dias se tornam cada vez menores,e nossa existência passa a ser mais sofrível. Podemos viver em perfeita harmonia com os dois,mas na maioria das vezes não depende somente de nós, geralmente recebemos educação e geramos saúde a partir dessa situação. E quando nos é negada essa educação? E quando ela é falha?

Dentro do consultório odontológico uma situação me colocou diante de uma realidade que eu já reconhecia,apenas não aceitava ainda. Pois é, às vezes também nos deixamos levar pelas máscaras que o sistema nos impõe,e acabamos aceitando que está tudo muito lindo,tudo muito organizado. Ao atender um adolescente de 13 anos,cursando a terceira série primária,acabei descobrindo que ele não sabe assinar o próprio nome,e muito menos ler. Ao pedir que assinasse seu nome na ficha de produção diária de procedimentos,ele me disse que não sabia,e que nunca tinha assinado. Perguntei como ele tinha passado de ano,como conseguiu aprovação,e ele me respondeu que as professoras sempre o passavam,mas que nunca tinha se preocupado em mostrar a ele como assinar o nome nem muito menos ler um texto.

Conversei muito tempo com ele,vi sua capacidade de raciocinar,de formar frases e que sua timidez ia sendo perdida,e que cada vez mais me conscientizava que aquilo tudo era um tremendo absurdo.

Sempre visito as escolas do local aonde trabalho,pois coordeno um programa de saúde bucal,e justamente tive a oportunidade de ir até a escola na qual o paciente estuda. Se não fosse por necessidade teria ido mesmo pela minha consciência ,pois os questionamentos não paravam em minha cabeça.

Chegando à escola,procuro a direção,e ao conversar com os responsáveis busco respotas para toda a situação. E pasmem,a diretora me relatou,na minha cara,"não doutor,nem ligue pra ele não,ele não é normal não!!! já tentamos muito fazer ele escrever,mas ele não aprende nunca!!!". Falei pra ela que ao conversar com ele não vi nenhum traço de loucura,e perguntei como elas passavam ele de ano sem ao menos saber assinar o nome. E outra resposta absurda: "doutor,temos o projeto acelerar,então ninguém pode ficar reprovado,pois a escola perde pontos e o governo não quer ninguém reprovado". Pois é amigos,o nosso governo quer números,nosso presidente quer números,quer estatísticas que mostrem o fim do analfabetismo,e dessa forma "aceleram" o aprendizado. E "aceleram" também o desemprego,a pobreza, a fome, o crime organizado, as injustiças socias....

Saí da escola triste,e vi que não tinha mais jeito,a não ser que o pequeno adolescente mudasse de escola, e isso não dependeria de mim,infelizmente...

Ele vai continuar voltando ao consultório,e vou continuar estimulando seu aprendizado,mostrar que é uma obrigação da escola ensiná-lo a ler e escrever. Para não criar maiores transtornos resolvi ficar por aqui com essa história,pois poderia muito bem buscar alternativas na secretaria de educação,mas talvez só piorasse a situação e me revoltasse mais ainda,pois acabaria descobrindo que como esse devem existir mais e mais casos...

Abraço a todos